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MOTIVO I
O narrador.
O narrador é a Morte. Mas não é a mesma que nos citaram sempre: sorumbática, mal
humorada, apavorante, feia e triste. Aliás, que nesta obra, não se sabe especificamente qual
seria a característica “física” dela. Dele? É espectro, mas é quase gente, porque sente
temperatura, odores, gosta de cores e de nomes. Não é frágil, mas chega a se fragilizar. Gosta
das palavras, talvez seja mais um motivo para a rápida identificação com Liesel. “Por favor,
confie em mim. Decididamente, eu sei ser animada, sei ser amável. Agradável. Afável”.
(Zusak, 2007: p. 9) A menina sente, percebe, tateia, rouba. Ela igualmente, o roubo é de coisa
sem vida: corpos. Roubar coisas sem vida não seria roubo. Seria? Livros não lidos, serem
roubados, é roubo? Liesel recolhe, acolhe e dá vida aos livros. A morte recolhe, acolhe corpos
que viveram. A morte seria o fim de uma história, Liesel seria o início. As duas seriam o fio
da narrativa que mistura elementos tão antigos, mas tão interessantes e enigmáticos como
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sempre e embevecem de poesia a trama toda. Elementos como a perda, amizade, o amor, as
injustiças, a guerra e os livros.
MOTIVO II
O segundo motivo para ler A menina que roubava livros está em encontrar-se com o
pretexto (real) de uma menina querer roubar livros. Encontrar-se e, dessa maneira, investigar
as outras causas de Liesel. A menina ansiava, em seu íntimo, roubar palavras. Mas não como
se fossem coisa, queria roubá-las como se fossem algo que necessitavam de interpretações
originais. A menina quer roubar palavras e nem sabe do que se tratam, pois não sabe ler, nem
escrever. Mas sentiu necessidade de tê-las mais perto de si. Quererá aos poucos descobrir seus
sentidos, ou a falta deles. Ela tem nove anos, uma mãe sozinha, um irmão morto e o gelo
imenso da guerra alemã para encarar.
É no cemitério, no enterro do irmão, que a menina rouba o primeiro livro de uma série:
“Havia uma coisa preta e retangular abrigada na neve. Só a menina viu. Ela se curvou,
apanhou-a e a segurou firme entre os dedos. O livro tinha letras prateadas”. (Zusak, 2008: p.
26). Era O manual do coveiro. Estranha leitura para uma criança de tão tenra idade. Mas
aquela menina viu o livro, abrigado na neve. A capa preta e a letra dourada pareciam querer
dizer em segredo, que seria preciso aprender a perder aos poucos. E que seria prudente,
inclusive, aprender a enterrar o passado, mas aos poucos.
MOTIVO III
Nesse momento, pode-se parar e respirar um pouco, por conta da falta de sentido ao
sentido de roubar um livro, no caso, um manual de como enterrar bem um caixão. A narrativa
desorienta o leitor incauto: ler sem saber ler? Como? Deparamo-nos com o terceiro motivo
para a leitura da obra em análise: ler para aprender a ler. E aqui, Liesel nos dá uma lição
memorável: livro é para ser lido, mas antes deve ser querido. Deve-se querer ler. Afinal, “um
texto existe porque existe um leitor para dar-lhe significação”. (CAVALLO; CHARTIER,
1998, p. 5). Lisel aprenderá a fazê-lo, devagar, pacientemente, e, sobretudo: magicamente. Há
espaço então, para uma reflexão: a literatura não poderia ser empurrada como em goles
difíceis, todos precisariam poder escolher o que ler. De tal maneira, haveria o deparar-se mais
rapidamente com a lucidez encantadora, dulcificante, áspera, difícil, mas elementar, que é a
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prática do encontro com as palavras. Até porque, o objeto livro vem depois, o que os
escritores fazem, inicialmente, é escrever textos:
Os autores não escrevem livros: não. Escrevem textos que se tornam
objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados
– manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso cujas
maneiras de ler variam de acordo com as épocas, os lugares e os ambientes
(CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 9).
MOTIVO IV
Surpresa.
Sim, a surpresa seria o terceiro motivo para ler este romance. A surpresa de
encontrar uma narrativa nova sobre um tema gasto e agastado: o holocausto. Há sessenta e
quatro anos começava uma das piores fases da história do mundo. Uma fase vergonhosa,
triste, suja: indizível. E indescritível, já que o horror foi tanto, tamanho, que excedia (e
excede) o universo do dizer, escrever, exprimir. A menina que roubava livros traz essa e
outras surpresas. Trata-se de um novíssimo olhar sobre a guerra do Führer, e, sugere que seja
um olhar sem intenção de ferir. Já que todos (uns em dose alarmante) de alguma maneira
fomos decisivamente afetados.
Rudy Steiner, vizinho e amigo de Liesel é outra surpresa. A surpresa de
uma paixão que nasce e cresce ali perto, mas tão distante de se realizar na prática, quanto um
sonho inventado. É uma companhia-companheira, rouba frutas com ela, rouba a alegria onde
nem há, numa Alemanha que não deixou saudade. Rouba um livro para ela. Depois vai
embora com a Morte. É uma surpresa existir uma história de amor sem materialização, e nem
por isso se tornar história de amor frágil. Aliás, seja talvez por isso, que tal história de amor
seja tão forte.
MOTIVO V
Não é fácil chamar a atenção pela linguagem. Haja vista tantos livros encalharem na
possibilidade de serem lidos. Ou, serem lidos, mas serem lembrados justamente pela
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dificuldade do encantamento daquela linguagem. Mas que mistério é esse? O de cativar pela
linguagem?
O autor de A menina que roubava livros realiza o que se pode chamar de façanha: incitar pelo
óbvio. Escrever como quem conta, quando na verdade, escreve como quem quer que o outro
(no caso, o leitor) ouça. Isso não é novidade na literatura, muitos tentaram. Novidade é que
poucos conseguiram. Porque o leitor pode se agastar, mas no caso desta narrativa, o leitor
segue. Pode até parar para um café, água, dormir. Mas continua e termina com a uma
confissão: “Odiei as palavras e as amei, e espero tê-las usado direito”. (Zusak, 2008: p.459)
Ela reflete porque sabe perfeitamente sobre o que narra, ou pelo menos sugere saber. E sugere
saber também que a linguagem é coisa muita séria e que quando bem usada, pode-se distribuir
o que se quer dizer como quem atravessa uma noite fria embaixo de um bom e afetuoso
cobertor quente. Ainda que nos encontremos no frio gelado de uma guerra sem nenhum
sentido. Ainda que seja o fim do mundo.
by Solineide Maria de Oliveira e Patrícia Kátia da Costa Pina